Por Luciano Martins Costa em 24/03/2014 na
edição 790 do Observatório da Imprensa
Algumas centenas de pessoas ensaiaram sábado
(22/3), no Rio e em São Paulo, uma reedição da Marcha da Família com Deus pela
Liberdade, ato que em março de 1964 animou os espíritos golpistas que acabaram
derrubando o governo de João Goulart.
No domingo (23/3), os jornais dedicaram
às manifestações nada mais do que os relatos corriqueiros das curiosidades que
acontecem nas cidades grandes. No fim de semana e na segunda-feira (24), seguem
as reportagens especiais sobre o que foi aquele período da nossa história
recente.
Há algumas lições a serem observadas nesse
noticiário. A primeira delas é que, embora a imprensa hegemônica, aquela que
ainda exerce uma influência considerável sobre as instituições, continue
obcecada em derrubar o grupo político que governa o país desde 2003, está fora
de cogitação apoiar um golpe antidemocrático.
A conspiração se dá no dia a dia,
nas escolhas editoriais que procuram demolir a autoconfiança dos brasileiros e,
principalmente, pressionar por mudanças na orientação das políticas públicas.
Outra questão a ser observada é o cuidadoso
trabalho de revisão histórica que os jornais estão produzindo a respeito das
cinco décadas que se sucederam ao golpe de 1964.
Mesmo se colocando em oposição
declarada às políticas de incremento da renda dos mais pobres implementadas há
dez anos, a imprensa finalmente reconhece que essas políticas resultaram em
grande avanço na redução das desigualdades produzidas durante o período da
ditadura militar.
Entre os títulos considerados de circulação
nacional, o Globo é o diário que enfrenta com mais determinação a tarefa de
corrigir a visão que a imprensa tentou impor aos brasileiros até aqui: o jornal
carioca afirma que o Brasil levou cinquenta anos para “se recuperar do estrago
que a política de arrocho salarial do regime militar e a inflação fizeram na
distribuição de renda brasileira” (ver aqui
e aqui).
O jornal afirma, explicitamente, que o
principal resultado da política econômica da ditadura foi transferir pelo menos
70% do crescimento da riqueza para os 10% mais ricos.
Contrariando a doutrina
A recuperação da economia nacional só foi
possível após o Plano Real, em 1994; ou seja, durante a maior parte do período
que os economistas chamam de “os trinta anos gloriosos” do capitalismo, o
Brasil produziu riqueza para os ricos e manteve a maioria da população em uma
situação de extrema vulnerabilidade.
Embora os artigos dos jornais não abordem o
assunto diretamente, os dados publicados indicam claramente que a recuperação
da renda dos mais pobres se concentra no período iniciado pelo primeiro mandado
do ex-presidente Lula da Silva.
A retrospectiva também permite constatar como a
intervenção militar na política teve como objetivo preservar os privilégios da
oligarquia que sempre se apropriou da riqueza nacional.
Em fevereiro de 1964, o então presidente João
Goulart havia aumentado o salário mínimo para R$ 1 mil, em valores atuais,
tentando recuperar o poder de compra que os trabalhadores tinham em 1950.
O
golpe se acelerou após essa decisão, o que revela claramente o papel das Forças
Armadas, na época, como guarda pretoriana submissa à oligarquia.
Alguns analistas citados pela imprensa
consideram que a recuperação da renda dos mais pobres começou em 1995, com o
aumento real do salário mínimo, mas só se consolidou quando o ex-presidente
Lula da Silva criou os programas econômicos de proteção social.
Era necessário
romper a doutrina conservadora segundo a qual o Estado deve deixar que o
mercado se regule naturalmente, de modo que o salário reflita a lei da oferta e
da procura. Foi preciso usar a alavanca dos programas sociais, para que a
desigualdade começasse a diminuir.
A terceira, mas não menos importante, lição a
ser tomada das crônicas do fim de semana é que a imprensa sinalizou claramente
que não compactua mais com soluções brutais como o golpe militar para superar
períodos nos quais a política nacional contraria seus dogmas.
Embora algumas páginas nobres dos jornais
ainda estejam tomadas por pitbulls da irracionalidade, suas pregações não foram
capazes de produzir mais do que uma lacônica marcha de uns poucos insensatos.