A reedição da Marcha pela Família com Deus,
neste sábado, tenta escorar-se nas Forças Armadas para ganhar fôlego
Por Cynara Menezes
Em março de 1994, no aniversário de 30 anos
do golpe, não apareceu ninguém disposto a ressuscitar a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade, apoio fatal dos privilegiados à deposição de João Goulart
em 1964.
O presidente era Fernando Henrique Cardoso, filho e neto de generais.
Em março de 2004, com o operário Lula no comando do País, tampouco as viúvas da
“revolução” se ouriçaram.
O que explica essa agitação às vésperas dos 50 anos? Seria apenas o peso da efeméride ou o Brasil tornou-se ainda mais reacionário?
O que explica essa agitação às vésperas dos 50 anos? Seria apenas o peso da efeméride ou o Brasil tornou-se ainda mais reacionário?
Convocada para este sábado 22, a reedição da
marcha corre o risco de levar ao paroxismo a famosa frase de Karl Marx: “A
história acontece como tragédia e depois se repete como farsa”.
Mesmo nas redes
sociais, onde a capilaridade das ideias grotescas e atrasadas é assustadora, a
adesão à passeata não chega a empolgar. No Facebook, a principal página de
convocação da marcha em São Paulo tem pouco mais de 20 mil seguidores.
As
demais, em outras capitais, não alcançam 3 mil. Em resumo: 100 mil nem na
internet. Chama a atenção, porém, a tentativa dos organizadores de vincular o
evento às Forças Armadas. Os pontos de encontro dos manifestantes são comandos
estaduais do Exército e Tiros de Guerra. Militares da reserva e alguns poucos
da ativa manifestaram apoio ao movimento.
Mais do que defender a possibilidade de uma
intervenção militar, os oficiais de pijama parecem preocupados em salvaguardar
o “legado” da “revolução” contra as “mentiras” disseminadas em seu 50º aniversário.
É esse o teor, para citar um caso, do texto divulgado pelo general reformado
Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-secretário-geral do Exército, em dezembro do ano
passado.
“Nos 50 anos do Movimento Civil-Militar, o
Exército Brasileiro será o alvo principal de intensa campanha de desgaste a ser
movida pela jurássica esquerda radical, sempre abraçada à ideologia socialista,
responsável pelos maiores crimes contra a humanidade no século XX”, escreveu.
“Diante desse cenário, a consciência do militar, da ativa ou reserva, com
certeza lhe dirá: não se omita.
Hoje, a esquerda domina a política nacional e seu ramo radical-revanchista controla amplos setores dos Poderes da União.”
Hoje, a esquerda domina a política nacional e seu ramo radical-revanchista controla amplos setores dos Poderes da União.”
Uma
datação científica com carbono provavelmente localizaria esse texto entre 31 de
março e 1º de abril de... 1964.
No mês passado, foi a vez do também reformado
general de Exército Pedro Luis de Araújo Braga, presidente do Conselho
Deliberativo do Clube Militar, destacar o “jubileu de ouro” da “revolução
democrática brasileira” e da necessidade de defendê-la dos “detratores” que a
chamam de “golpe” ou “anos de chumbo”. Em tom de ameaça, recorreu a um discurso
típico da Guerra Fria:
“O Brasil, que nasceu sob a sombra da cruz e que, como
diz o cancioneiro popular, ‘é bonito por natureza e abençoado por Deus’, será
sempre uma nação cristã, fraterna e acolhedora, amante da paz, livre e
democrata. Jamais será dominada pelos comunistas, mesmo que isto custe a vida
de muitos”. Braga classificou a Marcha da Família de antanho de
“extraordinária”.
Na revista da Sociedade Militar, outro
general reformado, Paulo Chagas, saúda a marcha como “um bom começo” e assume o
golpismo. “A debacle da Suprema Corte, desmoralizada por arranjos tortuosos que
transformaram criminosos em vítimas da própria Justiça, compromete a crença dos
brasileiros nas instituições republicanas e se soma às muitas razões que fazem
com que, com frequência e veemência cada vez maior, os generais sejam instados
a intervir na vida nacional para dar outro rumo ao movimento que, cristalinamente,
está comprometendo o futuro do Brasil.
Os militares em reserva se têm somado
aos civis que enxergam em uma atitude das Forças Armadas a tábua de salvação
para a Pátria ameaçada.”
O Ministério da Defesa admite ser difícil
prever o tamanho da reedição da marcha e tem monitorado a movimentação na
caserna por meio de conversas com os comandantes das três Forças. Há uma
orientação expressa dos chefes militares: os subordinados estão proibidos de
tratar do assunto. Segundo apurou CartaCapital, o ministro Celso Amorim não vê
motivos para maiores preocupações, pois não há participação de militares da
ativa.
Amorim tem consciência de que oficiais da reserva não perderão a
oportunidade para colocar as mangas de fora, mas entende as críticas nas redes
sociais como parte da liberdade de expressão em um país democrático. Ou seja,
está garantido aos milicos de pijama um direito que a ditadura suprimiu da vida
dos cidadãos.
Se é natural esperar saudosismo em militares
aposentados, causa espanto encontrar o mesmo sentimento em civis.
Apresentadora
dos vídeos que convocam para a manifestação em São Paulo, Cristina Peviani
protagonizou uma cena dantesca durante o depoimento da ex-presa política e
militante do PCdoB Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, em dezembro passado.
Enquanto Amelinha relatava, emocionada, os choques na vagina, seios e outras
partes do corpo, as sessões de palmatória e uma tentativa de estupro, Peviani
mascava chicletes, ria ruidosamente e lixava as unhas. Só se conteve depois de
ser advertida por um agente do fórum.
Fã de Carlinhos Metralha, ex-agente da
ditadura acusado de assassinato e tortura, Peviani, atualmente desempregada,
segundo ela, “graças às nossas faculdades falidas”, provocou os militantes de
direitos humanos que acompanhavam o depoimento de Amelinha do lado de fora do
fórum.
“Cuidado, somos torturadores”, dizia, em tom de deboche, enquanto
filmava o ambiente com a câmera do celular. Em um dos vídeos nos quais convoca
para a passeata, afirma, categórica: “Nós estamos num período muito, muito,
muito horrível”. As páginas pró-marcha comprovam a frase.
Outro entusiasta do revival golpista, o
advogado Célio Evangelista Ferreira é conhecido nos tribunais de Brasília por
suas petições fora do comum. Ferreira solicitou três vezes o impeachment de
Dilma Rousseff à Câmara. Todas foram negadas. Em uma das petições, pretendia
tirar a presidenta do poder por ela ter instalado a Comissão da Verdade, “um
atentado à Pátria”.
Em janeiro, solicitou à Procuradoria-Geral da República que
protegesse a marcha da família da ação do “segmento do banditismo oligárquico
comunista no poder encastelado no Estado”.
O mais engraçado: Ferreira assina, em nome
das Forças Armadas, um “documento” de apoio à manifestação de muito sucesso nos
blogs simpáticos ao militarismo. O advogado também tentou registrar no Tribunal
Superior Eleitoral sua candidatura à Presidência da República.
A solicitação
foi rejeitada pelo fato de a legislação eleitoral não permitir candidaturas
avulsas. O TSE privou os eleitores de um pouco de comédia no horário eleitoral
gratuito.
Não há muitos registros de movimentos
semelhantes ao redor do mundo nos últimos anos. O mais recente aconteceu no
Chile há dois anos, justamente durante a Presidência do direitista Sebastián
Piñera, que acaba de ceder o posto à esquerdista Michelle Bachelet.
Em nome da
“liberdade de expressão”, Piñera autorizou a realização de uma manifestação em
homenagem ao ditador Augusto Pinochet.
O centro de Santiago virou uma praça de
guerra, embate que não se repetiria no ano passado, quando se completaram 40
anos da morte de Salvador Allende. Em São Paulo, grupos antifascistas agendaram
protestos na Praça da Sé para a mesma hora da marcha. Pode haver confusão.
Ou
pode não acontecer nada, dada a incapacidade atual dos movimentos reacionários
de trocar o anonimato covarde e confortável das redes sociais pelos riscos das
ruas.