Em manifestação de rua em
São Paulo, um homem maltrapilho segurava um cartaz: "Sou morador de rua.
Quero Copa... cozinha, banheiro, sala, quarto e tudo que tenho direito".
Estamos às vésperas da Copa do Mundo. Recebemos visitas em uma casa que ainda
não está devidamente arrumada. Estádios são maquiados para disfarçar obras
inacabadas e aeroportos se parecem com praças de guerra, tamanha a poeira e os
ruídos.
Se a sala da Copa ainda
exige faxina, na cozinha o caldeirão ferve. O governo tem o azar de a Copa coincidir
com o ano eleitoral. E demonstra que não aprendeu a lição das manifestações de
rua na Copa das Confederações, em 2013.
Aquelas foram manifestações
pacíficas, mobilizadas pelas redes sociais e "acéfalas": sem
discursos, partidos, siglas embandeiradas e propostas.
Apenas protestos. A
opinião pública deu amplo apoio enquanto elas se mantiveram imunes aos
provocadores que, ao depredar os patrimônios público e privado, jogaram parcela
considerável da população contra os manifestantes.
Marx já advertira os
operários, no século 19, que de nada adiantava quebrar máquinas de fábricas. A
luta não é contra os patrões, é contra o sistema, dizia ele. Contudo, ainda
hoje o esquerdismo perdura como "doença infantil do comunismo", como
diagnosticou Lênin, e a repressão policial se infiltra para desvirtuar os
protestos.
O governo erra ao não
dialogar com os movimentos sociais, em especial os da juventude. Parece não
perceber o paradoxo: fez-se inclusão social, por meio de políticas sociais e
medidas "contracíclicas", mas não se promoveu inclusão política.
Por
mais espantoso que soe, esses 12 anos de governo petista, sustentado por um
esdrúxulo balaio de alianças, foram despolitizantes. Nutriram o bolso, não a
consciência crítica.
É fato que o governo
favoreceu o acesso do povo a bens pessoais. Qualquer barraco de favela contém
geladeira, TV, máquina de lavar e telefones celulares. Desonerou-se a
"linha branca", congestionaram-se as ruas de carros graças ao crédito
facilitado.
O que parecia um avanço resultou em equívoco. E os bens sociais? As
manifestações pedem educação, saúde, transporte público e segurança
"padrão Fifa".
O processo de
"aceleração do crescimento" deveria ter feito o percurso inverso, a
exemplo da Europa Ocidental a partir da Revolução Industrial. Primeiro,
educação de qualidade, sistema de saúde socializado e adequado, saneamento,
metrôs e ferrovias. O que favoreceu o acesso aos bens pessoais, malgrado as
duas guerras que afetaram o Velho Continente.
O PT não chegou ao Planalto
graças à "Carta aos brasileiros" endereçada aos banqueiros e
empresários. Chegou pela acumulação de forças dos movimentos pastorais, sociais
e sindicais ao longo de 24 anos (1978-2002). Não soube, porém, administrar esse
capital político. Isolou-se no Planalto sem dar ouvidos à planície.
Abandonou o
trabalho de base, a ponto de já não dispor de militância voluntária em períodos
eleitorais e se ver obrigado a remunerar jovens desocupados para segurar
cartazes nas esquinas...
Agora, a cozinha invade a
Copa. Tomara que o governo não troque as bolas pelas balas. Vamos torcer pelo
Brasil! Para que vença a Copa e saiba ouvir o clamor da cozinha, cujos
manifestantes, na falta de canais políticos confiáveis, aprenderam que governo
é que nem feijão, só funciona na panela de pressão.
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Artigo publicado por Frei Betto
na Folha de São Paulo em 10/06/2014